O Enterro das Casas


               Tal como os homens, as casas nascem dos seus alicerces, crescem com os seus andares e mais anos menos ano (para as mais felizes, mais século menos século) caem e morrem, enterrando-se nos seus próprios escombros.
              Tal como os homens, em Angola as casas nascem, parte das vezes sem alicerces, raramente crescem em altura e, mais dia menos dia, começam ainda em vida a ser enterradas.
             Não que os homens como as casas sejam diferentes em Angola, das casas e dos homens de qualquer parte do mundo. O facto é que aqui sobram  buracos e para se enterrarem estes, enterram-se igualmente as casas e com as casas, os homens.
            O caso é assim: em trinta e não sei quantos anos de vida, as ruas, as vielas, as avenidas e as praças nunca foram arranjadas. As asfaltadas perderam a cobertura, sofreram um processo de proletarização evidente e ficaram de terra mais ou menos batida, tal como as outras que já tinham nascidas pobrezinhas. Como era costume dizer-se: aliava-se a teoria à prática, a ideologia à realidade.
         Em trinta e não sei quantos anos a chuva, ora umas vezes mais, ora outras vezes menos, mas sem falhar ano algum,  caiu, esburacou, aluiu, aprofundou e fez de cada estrada um mostruário de buracos. Se ainda houvesse  “caixeiros viajantes” como antigamente (quem se lembra já destes vendedores de loja em loja?) bem poderiam  os municípios empregar alguns, para vender buracos aonde os não houvesse. Venderíamos assim, buracos à América, à Inglaterra, ao Japão e aonde mais houvesse moeda forte, para pagar esta matéria prima que aqui temos, e tanta  que  até a enterramos.
          Como a chuva abre os buracos e os Comissariados os não aterram o cidadão não tem outro remédio senão arranjar forma de os tapar. Vem um e carrega pedra, vem o outro e traz entulho, aquele acha que a areia é que fica bem, o outro entende que fica menos fundo, o buraco disfarçado com a mesma terra vermelha que o dito tem nas margens.
         Porque em Angola, os nossos buracos têm margens e, sem ter foz para onde desagúem, tem a nascente que vem de todos nós. Se a chuva lhes nasceu, num dia de maior abastança de águas, é graças aos nossos despejos que o buraco continua, que o buraco permanece, que o buraco sobrevive.
         E assim vai o buraco de ano para ano mais crescido em entulho, mais alto em aterros, e já ultrapassa passeios, e quando a chuva cai, em vez de serem as casas a desaguarem águas na rua, é a rua que desagua as águas para dentro das casas.
         Ninguém duvida que  tenhamos os maiores buracos do Continente. Buracos que foram os maiores em profundidade e hoje são, depois de aterrados, os maiores em altura. Buracos que são de maior idade, e buracos–meninos que só engatinham no seu pedacito de água.Buracos históricos também, que nos ficaram do tempo colonial e buracos vizinhos, solidários e amigos: a gente alimenta-lhes a fome e a sede durante todo o ano e eles retribuem com o cheiro daquilo que os transborda durante todas as épocas. A gente dá-lhe durante a noite os sólidos e os líquidos que nos sobram e eles, quando chove, despejam-nos em cima as águas que lhe são excedentárias.
           Proponho: quando o Senhor Governador fizer anos, vamos oferecer-lhe um buraco. Há aqui um, na Rua 12, mesmo em frente à Igreja. É um buraco santo, um buraco devoto que assiste à entrada de todas as missas,  novenas e procissões, há mais de vinte e cinco anos. Deve servir a contento.Embrulhado em papel celofane, com uma fita encarnada, ficará por certo a matar, à frente de sua casa, ou até no seu quintal – que a buraco dado não se olha à posição.
          No tempo do cacimbo, deve o buraco ser regado umas três vezes por semana, ou seja: um dia sim, outro dia não, para que não seque e morra, para que não perca a sua identidade de buraco luandino: cheio de água, cheio de lixo, cheio de perfumes silvestres e naturais.


                                                                             Darío de Melo