Carta Fechada
Senhor Governador:
Normalmente
escrevem-se
Cartas Abertas quando se vem dizer mal, quando se trata de pôr a nu, de acusar,
de apontar, de dizer da nossa justiça a propósito da grandura de uma asneira,
ou da menor valia de uma pessoa.
A Cara Aberta
é quase um acto solene de acusação pública que só um motivo muito forte pode
fazer escrever e constitui, como que a última, a mais violenta, a mais
contundente arma de condenação escrita. Suficientemente chocante e capaz de
conter todo o furor da nossa indignação, deve ser de tal modo violenta que o
recebente se sinta não só acusado, mas coberto de vergonha, e olhado pelo mundo
com espanto e reprovação.
Uma
Carta Aberta é uma carta completamente nua,despida, com verdades que fazem
corar, com revelações que causam espanto, com palavras que cubram - uma
a uma -
o peso do descredito e da humilhação.
Nem
tanto terá sido assim a Carta Aberta que em tempos dirigi a V.Ex.ª. Nem tanto
será assim, a Carta Fechada que me apraz escrever-lhe agora. Porque como
dizia, as Cartas Abertas escrevem-se para dizer mal e as Fechadas ( que ninguém antes de
mim inventou) minutam-se para
falar bem.
Perguntará
V.Ex.ª porque serão elas fechadas...
As
Cartas Fechadas, Senhor Governador, funcionam como obra da necessidade, uma
prática de cautela, um exercício de pudor. Necessidade, porque ao escriba que
por costume diz mal, não ficará bem, de um momento para o outro, modificar o
discurso. Cautela, porque falar bem do governador pode fazer pensar que se
queira com boas palavras, cobrar o favor de um benefício. Pudor, porque se
nunca ninguém tem vergonha de dizer mal dos outros, toda a gente se sente
sempre um pouco comprometida, quando é obrigado a dizer bem.
Vale
então, esta minha Carta Fechada, para agradecer a V.Ex.ª o ter escutado a minha
outra Carta Aberta. Não só escutado, como ter mandado imediatamente arranjar a
rua esburacada por onde os carros saltavam e os despejos se faziam.
Agradecido,
se foi por causa da minha carta; agradecido igualmente, se a minha carta, pura
e simplesmente coincidiu com os planos que já haveria para a minha rua.
Do
mesmo modo, não posso deixar de louvar V.Ex.ª pelo verde com que está a
ajardinar a nossa cidade, igualmente mais limpa e aprazível, com calcetamento de
passeios -
à medida de qualquer grande cidade.
Porém
(e convidando-o
de novo para a minha rua que é a 12, aqui no Bairro dos Mártires) porém, dizia
eu, é o homem um eterno insatisfeito: quanto mais tem, mais quer, quanto mais
recebe, mais se sente carecido. Assim é: ...
... agora que temos uma pista,
onde antes era um sobe-e-desce de saltos e buracos; onde antes adejavam
crianças de dois e três anos, sem medo de serem atropeladas pelos carros que -
malembe, malembe -
de buraco em buraco, esperavam que elas se desviassem do meio da estrada; agora
que temos uma pista, dizia eu, não há hoje carro que não passe por aqui com
aquela vontade de quem vai tirar o pai da forca.
Por
enquanto, ainda não morreu ninguém, mas já houve dois pequenos desastres de
aviso.
Assim
sendo, e aproveitando o boato de que V.Ex.ª nos vai mandar alcatroar a estrada,
será que poderia acrescentar em cada vinte metros, aquelas lombas-parte-molas
com que se obrigam os motoristas a andar de pé mais leve na tábua das
acelerações?
Precisamente
iguais, Senhor Governador, às que deveria haver e não há, na Avenida de Ilha.
Precisamente da altura, das que deveria haver e não há, na Comandante Gika.
Precisamente, com o sentido de se virem a constituir, como elemento de
prevenção em tantas outras vias que as deveriam ter e não têm. Quando, as
pessoas insistem em conduzir e beber, um parte-molas pode fazer milagres
que nem Deus acredita.
Dario de Melo