Dentes & Buracos



Das coisas com que temos de nos habituar a conviver,  é com os dentes.
  Vai a gente na idade dos primeiros meses e logo aparecem os dentes com o seu cortejo de incomodidades. O menino não dorme, o menino chora, o menino tem febre, o menino desespera-se, e tudo isto, à conta de um dente que  nasce.
Nascidos os dentes, crescem as crianças e chega-se à idade de mudar de dentes, que é coisa que ninguém entende porquê. Do pouco uso dado estão os dentes de leite, ainda em estado de muito boa conservação. Mas Deus que é Deus, talvez para treinar o homem no consumismo em que estamos, a uns fá-los cair, a outros, mais teimosos, obriga-nos a arrancar. Casos raros, os dentes de baixo empurram os outros para cima, ou furam de lado numa atrapalhação nervosa de quem não sabe esperar e ficam a conviver uns com os outros numa fraterna dentição global. É aí, que o dentista aparece... vai arrancando uns e deixando outros. O menino berra, a boca compõe-se, o dentista amealha e Deus sorri, do alto da previdência de quem teve de inventar serviços para evitar o desemprego.
Dentes novos e definitivos - sorri o jovem para a vida. Nada mais a sofrer em matéria de dentes. Porém que a vida também morde. E vai daí que apareça em plena madurez da idade o dente do ciso. Inútil, que incomoda enquanto nasce e  chateia, logo a seguir que apodrece.
A cárie atormenta-nos - é um dente que já não presta, há outro que já não serve.A pouco e pouco fica-se sem dentes - um que se tira aqui, outro que se deixa além, este que se perde e aquele que se parte. De onde saem os dentes, ficam os buracos das gengivas.
O homem é, como vedes, de buraco em buraco que os dentes deixam, uma estória de contar muitos buracos. Marca dos dias, dos anos, das dores, dos sofrimentos, os buracos com que o homem fica - nos dentes, no coração e na alma. Nas ruas do abandono. Nas avenidas do desespero. Nos sítios por onde a vida passa e a gente tropeça. Na cidade onde se vive. Na capital onde nós vivemos.
Que dentes se arrancaram em Luanda para haver tantos buracos? Os incisivos que cortavam à primeira a vontade de trabalhar, ou os caninos que rasgavam a ideia de querer fazer? Os pré molares que ajudavam, ou os molares que bem sossegavam ao gosto de não fazer nada? A praia é sempre a mesma, com buracos ou sem eles. É no buraco de um prato que o mufete se come. A cerveja está aonde – geladinha, no buraco da garrafa ?...
Que dentes se arrancaram a Luanda, para que de buraco em buraco tivessem feito da minha rua um carrossel de buracos?
Senhor governador: um homem sem dentes pode falar, uma rua com buracos não dá para passear. Uma boca esburacada muita vezes cheira mal - é do hálito, do dente podre que tem, uma rua com buracos cheira mal e não é disto ou daquilo, é mesmo da aproveitação que a gente faz, deitando lá no buraco aquilo que a gente fez.
Senhor Governador: Faz favor, pegue só na raspadeira catrapillar porque a rua já está mais alta  que as casas, e quando chove, as águas dela, como todo o adubo que têm, vêm dentro da nossa sala. Estamos a ficar enterrados naquela  coisa  que cheira.

Senhor Governador: com os buracos daqui, aproveite e pode fazer no nosso Morro da Lua o Museu Provincial do Buraco, porque o buraco é também, no desenvolvimento do turismo que havemos de ter, a marca da nossa cultura.

Dario de Melo