A Baixa Reservada


Quem não tem carro na Baixa de Luanda (especialmente na Marginal) tem tudo para ser feliz: espaço, arcadas frescas onde o sol não bate, tonalidade azul-ondulada do mar e, principalmente, possibilidade de estacionar os pés onde quer que queira.
Quem tem carro e vem porque trabalha, ou porque tem necessidade, ganha com certeza uma manhã de mau humor, ou uma tarde que é pura e simplesmente perda de tempo.
De um lado – pegado ao calçadão – estacionam carros às dezenas, possivelmente das centenas de trabalhadores que aqui diariamente labutam.Temos pois, que do lado onde não há prédios estacionarão os que trabalham. Do outro lado, os que reservam o lugar.
São as embaixadas, os ministérios, as empresas, os hotéis, todos eles com sítio para estacionar.
Entre um reservado e outro, arrumam-se os patrões que não alcaçaram (ainda) estacionar por reserva e madrugam, quando a marginal está cheia de espaços para estacionar.
Os que vêm depois, estacionam no paralelo dos outros, na gosmice de que alguém saia para lhe ocupar o lugar. São os estacionistas da esperança, que sorvem a brisa fresca do mar e o remanso doce da preguiça.
A Marginal que já está reservada a quem a reservou (pagarão todos, o estacionamento à Administração local?) necessita de encontrar soluções para tanto tempo perdido, tanto gasto de gasolina e tantas voltas ao encontro de uma aberta que raramente há.
Se, por exemplo, a polícia de trânsito não retivesse a carta de condução por uma infracção tão simples como estacionar errado, podia  fazer-se como na Ilha da Madeira. As pessoas estacionariam em transgressão e os patrões, contando já com as multas, subvencionariam mensalmente os empregados – tantos dias de trabalho quantas as multas a pagar.
Outra ideia, é a dos duplos-carros. De manhã o motorista vem e estaciona o carro mesmo à frente da empresa. Às dez horas o patrão chega - sai o empregado, dá-lhe o lugar e estaciona no paralelo. Ao meio dia o patrão sai e o chauffer entra novamente e reserva outra vez o lugar.
Para quem como nós, não tem dinheiro para construir parques de automóveis subterrâneos, ou até silos, que são assim, armazéns em altura onde se guardam carros, e não havendo, ali na marginal,  nenhum palácio históricamente velho para se deitar abaixo e se lhe aproveitar o terreno, teremos de ir para a solução das plataformas de pernas altas.
Por detrás uma das outras, estacionam-se os carros, uns em baixo, outros em cima.
Nesta Marginal reservada e sem lugares, há qualquer coisa de “dejá vue”. Aqui, não há carro que consiga estacionar, como mais adiante, na Ilha, não há banhista que qualquer dia consiga chegar à praia.
As Lanchonetes constroem-se tão pegadas uma às outras que, ou a Administração pensa  fazer pontes aéreas  para quem queira ir tomar banho ou, com o tempo, as praias irão sofrer uma espécie de processo de privatização – para atravessar um bar e chegar à praia,  vai ser preciso pagar.
Porque atravessar suja, porque atravessar incomoda e afasta os clientes, porque atravessar, barulha e desassossega o descanso de cada um.
Assim como nas boites sem consumo obrigatório, mas com bilhetes de entrada.
Vamos apostar ou não vamos, no bilhete obrigatório para se poder entrar nas praias?

Darío de Melo


Naturalmente...


Há coisas que nem o diabo acredita: não ia à Ilha do Cabo há mais de dois anos.
Fiquei admirado. Diria melhor - atónito. Em cima da praia, o musseque cresceu. Junto ao mar, multiplicaram-se as lanchonetes. Não tarda, estarão as areias todas privatizadas. Construir-se-ão miradouros    para  ver o  mar  e  você terá de fazer a “despesa mínima”  (como nas boates ) para tomar o seu banho.
Do outro lado (ou seja, do lado da Baía) constrói-se também - ou casas de habitação com a boa parecença de palácios, ou mais lanchonete sem qualquer parecença especial.
Isto de ilhas aqui por Luanda está a dar que falar. É o caso do Mussulo, é o caso da Ilha dos Pássaros. E  se alguém se começar a lembrar,  será o caso da Ilha dos Padres e da Ilha dos Burros que, sem qualquer mau sentido, foi  nos tempos oferecida à União dos Escritores.
E a propósito de burros que são animais sem propósito algum, há quem diga que os jornalistas são mestres em fazer críticas sem apresentar nem sugestões, nem propostas de solução. Como se o jornalista (ou com ele qualquer outra pessoa) não pudesse criticar, dizer mal, dar uma simples opinião, apontar para onde o sapato lhe aperta, só porque não sabe como se fazem  os sapatos. Como se eu, ao falar da Ilha, fosse agora  obrigado a  saber tudo, para ensinar o senhor governador a resolver  os problemas que é visível que esta ilha tenha.
Quem iria acreditar se eu chegasse aqui e dissesse: “ Meus caros amigos, é fácil resolver este problema. Pegando no que há uns meses atrás  muito bem disse na Assembleia Nacional  um dos  Senhores Vice Governadores, informando que a maior parte das lanchonetes estão ilegais (ainda que protegidas por bilhetinhos e recomendações, como igualmente afirmou); Atendendo a que se formos compulsar legislação ainda não revogada, as casas de habitação estarão, possivelmente e também, em situação irregular; Considerando que  as leis  são feitas,  para cumprimento igual de quem quer que seja, é fácil resolver esta questão - pegue-se no tractor e proceda-se, do mesmo modo determinado e firme, com que, de quando em vez, se derrubam  outras casas sem a necessária licença.
Mas quem é que me iria acreditar se eu falasse assim? Claro que ninguém, porque uma medida destas é não só drástica, como, direi mesmo, fundamentalista, pouco política, economicamente gravosa dos interesses imediatos do Estado, por causa das indemnizações  a que seria obrigado.
Daí que eu faça uma outra proposta: ...
... que assim como existem reservas de caça em Angola, reservas de índios nos Estados Unidos, se façam aqui em Luanda, reservas de Praias Estatais Gratuitas ou de Baixo Custo. Mesmo que não sejam para tomar banho, porque naturalmente estarão poluídas,  servirão para mostrar aos nossos filhos e netos como é que as praias  antigamente eram, quando pertenciam a todos.
E embalado nesta fluência de propostas, talvez pudesse imaginar uma última, aconselhando a que não se  faça nada, mas se acabe (por uma questão de transparência) com o Ministério do Turismo que não tem realmente nada para fazer (pelo menos, ilhas já não terá).
Porque afinal, que turismo poderemos nós oferecer aos de dentro e aos que de fora  visitam as nossas ilhas?
  Naturalmente, o turismo privatizado do ar, das águas, das praias e das areias...
Naturalmente, o turismo  futuro das lanchonete: beba, pague, tome banho e pisgue-se...
Naturalmente, um turismo que não será para nós. Será, como soe dizer-se, não para quem quer (nem para quem merece, como antigamente) mas para quem tem e quem pode.

Dario de Melo

Fukas & Cartões

Aqui há coisa de trinta, quarenta, ou mais anos, tinham as grandes fazendas as suas cantinas, onde os empregados, aviando o dia a dia das suas necessidades, a pouco e pouco, gastavam o que em dinheiro deveriam receber. Eram as Fukas, as dívidas, porque o trabalhador, embora tendo direito ao seu dinheiro, como levava fiado, ficava sempre a dever.
Tinham os patrões a vantagem do lucro, fazendo negócio com o seu próprio pessoal. Aparentemente, não havia desvantagem para os empregados, senão a de não poderem escolher o preço e a qualidade do que compravam. Vendia-se do ruim que havia, pelo preço do bom que não se encontrava.
Os patrões de menos pessoal não tinham cantinas. Pagavam com vales que os empregados aviavam no comerciante que o patrão determinava. Também aqui, não havia prejuízo para os empregados, embora houvesse um lucro evidente para o patrão que pagava no  fim do mês, com uma letra a cento e oitenta dias. Quer dizer que o correspondente aos ordenados de um mês, só seis meses depois é que seriam pagos no banco pelo patrão.
Não havia, como vedes, qualquer lucro encoberto, qualquer percentagem combinada, qualquer intenção que (ao tempo) parecesse menos própria.
Passados estes anos todos, alguém se lembrou das fukas e dos vales, e inventou os cartões a que alguns funcionários têm direito. Recebe-se o cartão, e com ele, o nome do supermercado onde se deve gastar. Teoricamente não há também aqui qualquer desvantagem.
E voltamos ao antigamente: não compro o barato, ou a qualidade que quero, mas ao preço e da espécie a que sou obrigado.
  E é assim, que quem como eu tem cara de cooperante, não vai vez nenhuma ao supermercado que não apareça alguém a oferecer - “ pague com o meu cartão e dê-me o dinheiro”. Isto significa que as pessoas, preferem o dinheiro ao cartão, para fazer dele o que melhor lhes interesse.
No tempo colonial, no tempo dos patrões que apontavam as fukas e pagavam com vales, o que era assim, não podia ser de outra maneira, com os truques e os lucros que a altura lhes permitia.Mas agora, que não há desses truques nem lucros, porque recebemos o cartão com a loja já escolhida? Porque não poderemos escolher a loja que melhor nos convenha? Porque não teremos o direito de levantar o nosso dinheiro em qualquer tesouraria de Banco?
E nem queremos perguntar que concurso se fez, se faz, ou se fará para apurar a loja que melhor serviço garanta ao dinheiro que é de todos nós?
E de repente lembro-me que de pobres e mal agradecidos está o inferno cheio... Com cartão sou pobre, sem cartão sou mal agradecido...quem  pode resolver em cima da minha pobreza, ou da minha má educação?
Ninguém. Nem mesmo o dono do dinheiro que é nosso e não é nosso, que depois desta crónica, é capaz de decidir que não há mais nem vale, nem fuka, nem cantina, nem cartão.

                                                                                                              Dario de Melo

O Enterro das Casas


               Tal como os homens, as casas nascem dos seus alicerces, crescem com os seus andares e mais anos menos ano (para as mais felizes, mais século menos século) caem e morrem, enterrando-se nos seus próprios escombros.
              Tal como os homens, em Angola as casas nascem, parte das vezes sem alicerces, raramente crescem em altura e, mais dia menos dia, começam ainda em vida a ser enterradas.
             Não que os homens como as casas sejam diferentes em Angola, das casas e dos homens de qualquer parte do mundo. O facto é que aqui sobram  buracos e para se enterrarem estes, enterram-se igualmente as casas e com as casas, os homens.
            O caso é assim: em trinta e não sei quantos anos de vida, as ruas, as vielas, as avenidas e as praças nunca foram arranjadas. As asfaltadas perderam a cobertura, sofreram um processo de proletarização evidente e ficaram de terra mais ou menos batida, tal como as outras que já tinham nascidas pobrezinhas. Como era costume dizer-se: aliava-se a teoria à prática, a ideologia à realidade.
         Em trinta e não sei quantos anos a chuva, ora umas vezes mais, ora outras vezes menos, mas sem falhar ano algum,  caiu, esburacou, aluiu, aprofundou e fez de cada estrada um mostruário de buracos. Se ainda houvesse  “caixeiros viajantes” como antigamente (quem se lembra já destes vendedores de loja em loja?) bem poderiam  os municípios empregar alguns, para vender buracos aonde os não houvesse. Venderíamos assim, buracos à América, à Inglaterra, ao Japão e aonde mais houvesse moeda forte, para pagar esta matéria prima que aqui temos, e tanta  que  até a enterramos.
          Como a chuva abre os buracos e os Comissariados os não aterram o cidadão não tem outro remédio senão arranjar forma de os tapar. Vem um e carrega pedra, vem o outro e traz entulho, aquele acha que a areia é que fica bem, o outro entende que fica menos fundo, o buraco disfarçado com a mesma terra vermelha que o dito tem nas margens.
         Porque em Angola, os nossos buracos têm margens e, sem ter foz para onde desagúem, tem a nascente que vem de todos nós. Se a chuva lhes nasceu, num dia de maior abastança de águas, é graças aos nossos despejos que o buraco continua, que o buraco permanece, que o buraco sobrevive.
         E assim vai o buraco de ano para ano mais crescido em entulho, mais alto em aterros, e já ultrapassa passeios, e quando a chuva cai, em vez de serem as casas a desaguarem águas na rua, é a rua que desagua as águas para dentro das casas.
         Ninguém duvida que  tenhamos os maiores buracos do Continente. Buracos que foram os maiores em profundidade e hoje são, depois de aterrados, os maiores em altura. Buracos que são de maior idade, e buracos–meninos que só engatinham no seu pedacito de água.Buracos históricos também, que nos ficaram do tempo colonial e buracos vizinhos, solidários e amigos: a gente alimenta-lhes a fome e a sede durante todo o ano e eles retribuem com o cheiro daquilo que os transborda durante todas as épocas. A gente dá-lhe durante a noite os sólidos e os líquidos que nos sobram e eles, quando chove, despejam-nos em cima as águas que lhe são excedentárias.
           Proponho: quando o Senhor Governador fizer anos, vamos oferecer-lhe um buraco. Há aqui um, na Rua 12, mesmo em frente à Igreja. É um buraco santo, um buraco devoto que assiste à entrada de todas as missas,  novenas e procissões, há mais de vinte e cinco anos. Deve servir a contento.Embrulhado em papel celofane, com uma fita encarnada, ficará por certo a matar, à frente de sua casa, ou até no seu quintal – que a buraco dado não se olha à posição.
          No tempo do cacimbo, deve o buraco ser regado umas três vezes por semana, ou seja: um dia sim, outro dia não, para que não seque e morra, para que não perca a sua identidade de buraco luandino: cheio de água, cheio de lixo, cheio de perfumes silvestres e naturais.


                                                                             Darío de Melo

Como Nasce um Buraco


Cai uma lágrima de chuva e faz um furo no chão.  Passa um carro, um camion - entra e salta, bate e alarga. A vizinha então ajuda: descobre o primeiro ofício do buraco que é o de sítio de despejo. Aí se podem despejar muitas águas: a suja, a de sabão, a das sobras das comidas e  até, de outras sobras que é feio dizer aqui.
Cheira mal? É o cheiro da  natureza que nasce cultivada com a ajuda dos porcos e galinhas, cães e gatos que vão ali vasculhar no supermercado da  sobrevivência.
Passa um ano e chove mais. O buraco alarga. Agora já não é um buraco sozinho - tem lama. Lama de todas as cores que o buraco não é racista:  tem a branca de terra arenosa, vermelha de barro tijolento e a escurinha que é mesma da cor gentia de cá. Para o ano será um lago cheio de muitas companhias: moscas, mosquitos, limos, algas onde nadam tuqueias e cacussos.
Cuidado! não  ponha sal nessa água. Se a água fica salgada você pode ter no tal buraco, bagre, peixe espada e tubarão. É um perigo para a criançada que toma banho e não sabe  que pode morrer de morte comida. Tubarão é bicho que mata quando é peixe, e come tudo da gente se é pessoa.
Atenção: esse buraco que é lago  aí no meio do Bairro você tem de o tratar bem, com todo o  carinho do mundo... Há buracos como esse  que têm mais de dez, quinze e trinta anos. É preciso respeito pela idade. São buracos que o colono deixou abandonados e a gente nacionalizou. Agora são nossos. Velhos na idade da reforma, mas a gente lhes aguenta no serviço de parte molas.
Ao contrário do que se diz, a lagoa do buraco não está  só a  provocar doenças, também educa. A Lagoa do Buraco da minha rua é, verdadeiramente, uma Escola dos Tempos Livres. Ali aprendem as crianças  a arte de pescar, nadando na sua higiene de todos os dias. Ali aprendem os meninos  a defender a sua propriedade, enxotando e berridando os outros que não são de cá. Conhecem a lei:  neste buraco das pescas, só pesca o próprio dono do peixe
. Entendo que em cada escola se deveriam reunir todos os buracos do recreio para fazer deles um buraco só. Teríamos assim um só buraco educativo em vez dos tantos que temos.
Os próprio adultos que já não precisam de ser educados, porque sabem que  p’ra ter, é preciso xingar a mãe dos outros, refilar as dificuldades, porque quem não chora não mama, os próprios adultos, dizia eu, graças a esses buracos estão a ter uma saúde de ferro com a ginástica que fazem: sapato na mão e calça arregaçada, de cada vez que entram em casa, ou saem para o serviço. Graças aos buracos já houve até dois casamentos, porque as donas, como não tinham calça para levantar, arregaçaram as saias. E isto é como quem diz: quem as olhou cobiçou e quem cobiçou se quis ir ver mais perto, vai parar lá na Igreja. Que aqui neste Bairro dos Imbondeiros, não se usam esses costumes asfálticos de ricos - ir só no registo civil. Aqui, quem quer olhar e ver a fazenda, paga completo.
Falaram-me que anos atrás um buraco destes matou a fome a um bairro inteiro. Foi o caso de ter aparecido ali, com a Graça de Deus, um jacaré, já nascido na idade de adulto. Podia ter comido gente, mas como as panelas estavam em lume de aquece que é  só  água, meteram lá dentro o jacaré que, com a pressa nem foi bem cozinhado, mas foi muito bem comido.
É preciso não esquecer também que  os buracos têm uma forte vertente ideológica. São buracos democráticos  - todos, sem qualquer discriminação, os podem encher de lixo. São para todos, o banho das crianças e os mictórios dos adultos. Ainda mais: servem água gratuíta para quem quer lavar a roupa. Cheiram mal para toda a gente. Não escolhem nariz, nem posição social. Quem passa cheira. Quem não cheira, é porque não passou. Dividem por todos as doenças e matam a todos por igual. Só não podem matar rico,  porque rico não mora cá e filho de rico não está aqui.
Mas isto não quer dizer que a gente tenha menos respeito pelo buraco do nosso bairro. Porque defeitos todos nós temos e buraco é como gente, com as sua próprias dificuldades.
Entendo que devam ser louvadas as autoridades que ao longo de todos estes anos têm conservado, tratado e aumentado até, com desvelado carinho, e com inusitado cuidado todos os buracos que a nossa cidade tem.
Todos nós sabemos que os buracos fazem parte do património da cidade. São uma potencial fonte de interesse turístico, pelo que entendemos que se deva criar a Associação da Conservação dos Buracos, lembrando sempre que de cada vez que se nivela um buraco perde-se uma história. E propor criar, a Comenda do Buraco. Quem deverá ser o primeiro agraciado como  Comendador do Buraco? Quem?

Dario de Melo

Carta Fechada


Senhor Governador:

Normalmente escrevem-se Cartas Abertas quando se vem dizer mal, quando se trata de pôr a nu, de acusar, de apontar, de dizer da nossa justiça a propósito da grandura de uma asneira, ou da menor valia de uma pessoa.
A Cara Aberta é quase um acto solene de acusação pública que só um motivo muito forte pode fazer escrever e constitui, como que a última, a mais violenta, a mais contundente arma de condenação escrita. Suficientemente chocante e capaz de conter todo o furor da nossa indignação, deve ser de tal modo violenta que o recebente se sinta não só acusado, mas coberto de vergonha, e olhado pelo mundo com espanto e reprovação.
Uma Carta Aberta é uma carta completamente nua,despida, com verdades que fazem corar, com revelações que causam espanto, com palavras que cubram - uma a uma - o peso do descredito e da humilhação.
Nem tanto terá sido assim a Carta Aberta que em tempos dirigi a V.Ex.ª. Nem tanto será assim, a Carta Fechada que me apraz escrever-lhe agora. Porque como dizia, as Cartas Abertas escrevem-se para dizer mal e as Fechadas ( que ninguém antes de mim inventou) minutam-se  para falar bem.
Perguntará V.Ex.ª porque serão elas fechadas...
As Cartas Fechadas, Senhor Governador, funcionam como obra da necessidade, uma prática de cautela, um exercício de pudor. Necessidade, porque ao escriba que por costume diz mal, não ficará bem, de um momento para o outro, modificar o discurso. Cautela, porque falar bem do governador pode fazer pensar que se queira com boas palavras, cobrar o favor de um benefício. Pudor, porque se nunca ninguém tem vergonha de dizer mal dos outros, toda a gente se sente sempre um pouco comprometida, quando é obrigado a dizer bem.
Vale então, esta minha Carta Fechada, para agradecer a V.Ex.ª o ter escutado a minha outra Carta Aberta. Não só escutado, como ter mandado imediatamente arranjar a rua esburacada por onde os carros saltavam e os despejos se faziam.
Agradecido, se foi por causa da minha carta; agradecido igualmente, se a minha carta, pura e simplesmente coincidiu com os planos que já haveria para a minha rua.
Do mesmo modo, não posso deixar de louvar V.Ex.ª pelo verde com que está a ajardinar a nossa cidade, igualmente mais limpa e aprazível, com calcetamento de passeios - à medida de qualquer grande cidade.
Porém (e convidando-o de novo para a minha rua que é a 12, aqui no Bairro dos Mártires) porém, dizia eu, é o homem um eterno insatisfeito: quanto mais tem, mais quer, quanto mais recebe, mais se sente carecido. Assim é: ...
... agora que temos uma pista, onde antes era um sobe-e-desce de saltos e buracos; onde antes adejavam crianças de dois e três anos, sem medo de serem atropeladas pelos carros que - malembe, malembe - de buraco em buraco, esperavam que elas se desviassem do meio da estrada; agora que temos uma pista, dizia eu, não há hoje carro que não passe por aqui com aquela vontade de quem vai tirar o pai da forca.
Por enquanto, ainda não morreu ninguém, mas já houve dois pequenos desastres de aviso.
Assim sendo, e aproveitando o boato de que V.Ex.ª nos vai mandar alcatroar a estrada, será que poderia acrescentar em cada vinte metros, aquelas lombas-parte-molas com que se obrigam os motoristas a andar de pé mais leve na tábua das acelerações?
Precisamente iguais, Senhor Governador, às que deveria haver e não há, na Avenida de Ilha. Precisamente da altura, das que deveria haver e não há, na Comandante Gika. Precisamente, com o sentido de se virem a constituir, como elemento de prevenção em tantas outras vias que as deveriam ter e não têm. Quando, as pessoas insistem em conduzir e beber, um parte-molas pode fazer milagres que nem Deus acredita.

Dario de Melo               

Carta Aberta


Senhor Governador:

Há coisa de cinquenta anos, na terra de meus pais (sou filho de portugueses) era costume haver, atrás da porta de entrada de qualquer casa, uma espécie de pote, melhor dito, uma sanga com tampa, a que se chamava asado ( talvez porque tivesse asas) onde se faziam os despejos da noite.
Como era uma terra de muita agricultura, nada se desperdiçava: enchiam-se os vasos, durante a semana e, salvo erro à segunda-feira, pelas cinco da manhã (ainda muito de noite no inverno) saiam as mulheres à rua com os seus asados, para os despejar na lavra.
Ora, na madrugada de despejar os asados, ninguém se atrevia a abrir  as janelas por causa do cheiro. E lá iam as mulheres, umas atrás das outras, distantes, púdicas e educadas, para não dar a cheirar o que era seu, nem cheirar o que era dos outros. De manhã, ao acordar, já o cheiro não cheirava e a gente podia fazer a vida normal, abrindo portas e janelas.

Senhor Governador:
Pois acontece que aqui na Rua 12, do Bairro dos Martires que V.EXª visitou há pouco tempo, dizia: neste antigamente chamado Musseque dos Embondeiros que foi sempre exemplo de bastantes buracos e muita limpeza, há coisa de meio ano que se sente um perfume pouco convidativo. Quer dizer: há uma importação clandestina de aromas que necessita da intervenção, ou da polícia de fronteiras para saber de que áfricas é que ele veio, ou da polícia sanitária, para saber quem anda asfaltar com esterco, os  buracos limpos e bonitos que aqui existem.
Diz a minha tia Aurora que é pessoa de deitar tarde e acordar cedo, que aí pelas duas da manhã quando o bairro melhor dorme, abrem-se portas e despejam-se os penicos. Visse V.EXª a qualidade e variedade de penicos e ficaria admirado! Porque penico que se diga penico, não há. Há penicos de bacia velha, penicos de balde polivalente que de dia é para o lixo e à noite, serve para o que serve.
Por este andar, posso crer que a Rua12 se venha a transformar, com a experiência de hoje, num chamariz para o turismo do futuro. Mais agora que caiu o Palácio da D. Ana Joaquina e nos começam a faltar atractivos de interesse histórico, poderemos apresentar nesta Rua dos Penicos motivos únicos  de consideração ecológica.
Diz V.Exª  que basta? que isto não é uma crónica, mas um monte de palavrório mal cheiroso e ademais, lesivo à saúde dos ouvidos públicos?
Tem V.Exª razão. Tanta, que se eu não fosse a pessoa educada que sou, convidaria V.Exª para tomar em minha casa um Wisquizito com um certo cheirinho a merda, que é coisa que em nenhuma parte do mundo se toma. Especialidade da Rua  Doze, só aqui é que se pode.
Venha, Senhor Governador: o Wisky está pronto, prometemos-lhe que o cheirozinho, também.

Dario de Melo