Carta Aberta


Senhor Governador:

Há coisa de cinquenta anos, na terra de meus pais (sou filho de portugueses) era costume haver, atrás da porta de entrada de qualquer casa, uma espécie de pote, melhor dito, uma sanga com tampa, a que se chamava asado ( talvez porque tivesse asas) onde se faziam os despejos da noite.
Como era uma terra de muita agricultura, nada se desperdiçava: enchiam-se os vasos, durante a semana e, salvo erro à segunda-feira, pelas cinco da manhã (ainda muito de noite no inverno) saiam as mulheres à rua com os seus asados, para os despejar na lavra.
Ora, na madrugada de despejar os asados, ninguém se atrevia a abrir  as janelas por causa do cheiro. E lá iam as mulheres, umas atrás das outras, distantes, púdicas e educadas, para não dar a cheirar o que era seu, nem cheirar o que era dos outros. De manhã, ao acordar, já o cheiro não cheirava e a gente podia fazer a vida normal, abrindo portas e janelas.

Senhor Governador:
Pois acontece que aqui na Rua 12, do Bairro dos Martires que V.EXª visitou há pouco tempo, dizia: neste antigamente chamado Musseque dos Embondeiros que foi sempre exemplo de bastantes buracos e muita limpeza, há coisa de meio ano que se sente um perfume pouco convidativo. Quer dizer: há uma importação clandestina de aromas que necessita da intervenção, ou da polícia de fronteiras para saber de que áfricas é que ele veio, ou da polícia sanitária, para saber quem anda asfaltar com esterco, os  buracos limpos e bonitos que aqui existem.
Diz a minha tia Aurora que é pessoa de deitar tarde e acordar cedo, que aí pelas duas da manhã quando o bairro melhor dorme, abrem-se portas e despejam-se os penicos. Visse V.EXª a qualidade e variedade de penicos e ficaria admirado! Porque penico que se diga penico, não há. Há penicos de bacia velha, penicos de balde polivalente que de dia é para o lixo e à noite, serve para o que serve.
Por este andar, posso crer que a Rua12 se venha a transformar, com a experiência de hoje, num chamariz para o turismo do futuro. Mais agora que caiu o Palácio da D. Ana Joaquina e nos começam a faltar atractivos de interesse histórico, poderemos apresentar nesta Rua dos Penicos motivos únicos  de consideração ecológica.
Diz V.Exª  que basta? que isto não é uma crónica, mas um monte de palavrório mal cheiroso e ademais, lesivo à saúde dos ouvidos públicos?
Tem V.Exª razão. Tanta, que se eu não fosse a pessoa educada que sou, convidaria V.Exª para tomar em minha casa um Wisquizito com um certo cheirinho a merda, que é coisa que em nenhuma parte do mundo se toma. Especialidade da Rua  Doze, só aqui é que se pode.
Venha, Senhor Governador: o Wisky está pronto, prometemos-lhe que o cheirozinho, também.

Dario de Melo